Continuando a linha de pesquisa iniciada com os artigos “Só existe Polícia Militar no Brasil?”, “Qual a diferença da polícia dos Estados Unidos e a do Brasil?” e “Qual o salário de um policial no Estados Unidos?”, recebi um questionamento sobre um acalorado debate que ocorre nos Estados Unidos da América do norte por conta da chamada “militarização” das polícias americanas. Esse assunto me trouxe a memória uma notícia que circulou há mais de 10 anos dando conta que uma polícia municipal americana teria adotado o modelo militar brasileiro. Nesses dois casos, um concreto e atual, e outro quase um boato de tempos atrás, esconde-se uma grande oportunidade para mais uma vez nos debruçarmos na busca da verdade real, com o coração sincero, que é o que nos tem guiado desde o princípio em nossos objetos de estudo.
Para que o aproveitamento do presente artigo seja completo sugiro ao leitor que tenha lido os artigos indicados no parágrafo acima. Isso é de suma importância para que se possa descartar informações e dados já apresentados, o que tornaria esse texto pesado e repetitivo, além de por vezes indicar caminhos que poderiam fugir do foco proposto.
Como já foi explicado nos artigos anteriores o modelo policial americano difere, e muito, do brasileiro em aspectos secundários mas é muito parecido nos aspectos fundamentais, especialmente no que se refere a polícia militar brasileira. Cabe relembrar que o modelo policial de cada país obedece o seu desenvolvimento histórico e cultural próprio, o que faz com que tentativas de comparação absolutas acabem no vazio e sem sentido.
Contudo, no caso do grande debate sobre a militarização das polícias americanas cabe sublinhar que o que se discute não tem absolutamente nada a ver com o que vem à mente de qualquer brasileiro médio, onde ao falar de militarização vem a imagem do policial militar estadual, fardado, com divisas e postos bem definidos, cabelos cortados ao estilo militar e prestando continência, ao passo que ao se referir a uma corporação não militar imediatamente se venha a mente a imagem do policial civil brasileiro, sem uniforme, trajando roupas civis como qualquer um da população, de barba por fazer e tendo apenas dois postos, no caso delegado e agente, sem que as carreiras se comuniquem. Nada poderia ser mais fora da realidade americana atual. Para o americano todas as policias deles, no caso quase 18 mil departamentos de polícia, abrangendo as esferas municipal, estadual e federal, são civis, independentemente de serem paramilitares ou militares. Pois para eles as policias que não são das Forças Armadas são necessariamente forças públicas de atuação na sociedade civil em tempos de paz. Porém, como já foi explicado no outro artigo já mencionado, as polícias americanas adotam a ética e a estética militares em todas as suas atividades, sendo que quanto maior e mais complexo for o departamento de polícia e as suas atividades, mais militarizada ela é, chegando ao ponto de ser uma polícia militar normal, com Academia de Oficiais e Praças e subordinada a uma Força Militar em caso de guerra, como é a Guarda Costeira Americana, que em caso de conflito com outra nação, automaticamente fica subordinada a Marinha de Guerra, nos mesmos moldes que ocorre com as polícias militares brasileiras, que ficam subordinadas ao Exército somando mais de meio milhão de combatentes a Força Terrestre.
Continuando a nossa análise, o conceito de militarização nos Estados Unidos é muito diferente do conceito brasileiro. Para podermos entender melhor a realidade desse grande país temos que fazer referência a uma data que foi o divisor de águas na segurança pública americana: O 11 de setembro de 2001.
Em 11 de setembro de 2001 ocorreu o maior atentado terrorista da história dos Estados Unidos. O que parecia impossível aconteceu: terroristas vinculados a grupos muçulmanos revolucionários genocidas conseguiram sequestrar três aviões de carreira, com relativa facilidade, e atirá-los contra as torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque e contra o Pentágono, a sede de toda a burocracia e o Estado Maior das Forças Armadas americanas. Das cinzas e dos corpos pulverizados de milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças, sendo civis, militares, policiais e bombeiros, surgiu uma pergunta: Como foi possível perpetrar tamanho estrago a nação mais poderosa e bem organizada do mundo? E imediatamente a essa pergunta surgiu uma outra ainda mais premente: Como evitar que isso aconteça de novo?
As respostas foram variadas, assim como eram várias as esferas da sociedade envolvidas, as agências governamentais e as pessoas com poder de gestão responsáveis por responder essas perguntas. Depois de um tempo de reorganização, o Governo americano iniciou uma série de medidas com vistas a aumentar a segurança interna. Como as Forças Armadas são proibidas constitucionalmente de exercer qualquer ação dentro de território americano, diferente do que ocorre no Brasil, se fez necessário criar uma nova estrutura de segurança pública em nível nacional, além promulgar uma série de leis e decretos que aumentaram as penas por terrorismo, criaram protocolos mais rígidos para embarque de passageiros em aeronaves, além de implementar uma série de programas, com o seu respectivo financiamento, com vistas a aumentar a força e profissionalização das polícias em solo americano.
Um desses programas foi a criação de um fundo para rearmamento e reequipamento das polícias estaduais, municipais e federais. Com isso, mesmo as polícias de cidades pequenas com pouco efetivo policial e poucos recursos financeiros, puderam adquirir o que existe de melhor no mundo em termo de armamentos e equipamentos policiais e militares. Isso foi possível pois o programa previa que para receber um lote de fuzis de assalto M-4 ou um blindado do tipo “caveirão” totalmente equipado, bastava a polícia se cadastrar perante o Home Land Security, o novo e todo poderoso órgão de segurança pública federal americano, escolher qualquer equipamento que quisesse e pagar apenas o frete para a sua cidade. Obviamente que passados 13 anos do atentado de 11 de setembro, praticamente todos os departamentos de polícia dos EUA se beneficiaram do programa.
Com a chegada dos novos armamentos e equipamentos ocorreu uma mudança radical no treinamento e na postura dos policiais americanos. Pois além do fator de revolta e desconfiança que passaram a reinar depois do atentado que humilhou os americanos e jogou sobre eles um sentimento de impotência nunca antes experimentado, somou-se a tentativa de fazer com que os policiais se preparassem para um possível atentado ou conflito em larga escala dentro de solo americano. Durante as minhas viagens aos Estados Unidos esse sentimento estava onipresente, em maior ou menor intensidade, de que, em breve, o país deles vai passar por um grande conflito interno causado por terroristas ou uma invasão estrangeira.
O treinamento de um policial médio americano passou a contar com novas matérias como uso de fuzis de assalto, óculos de visão noturna, operação de blindados, uso de drones, táticas de combate urbano dentre outros treinamentos que antes eram restritos aos grupos de operações especiais, as SWAT’s.
Além da mudança de treinamento houve uma mudança na postura e apresentação individual dos policiais, que passaram a usar fardas mais ao estilo militar, com coturnos e gandolas, e, quando em distúrbios civis ou ocorrências graves, usando capacetes balísticos e fuzis de assalto, abandonando uma cultura centenária dos uniformes amistosos com quepes, gravatas, distintivos e chapéus engraçados de polícia montada.
Houve uma perda de referência por parte da população do policial de bairro, que patrulhava a pé, com seu uniforme impecável e garboso quepe, armado apenas com um revólver (sim, por incrível que pareça vários departamentos de polícia trabalhavam com revólveres de seis tiros no serviço normal) e um rádio de comunicação. Esse policial, em dias atuais, em uma boa parte dos departamentos de polícia, passou a trabalhar sempre de viatura, pois o porta-malas carrega, além de munições extras, kits de primeiros socorros, kits contra ataques terroristas por meio de agentes químicos, biológicos ou radioativos, farda mais ao estilo militar, luvas e óculos que melhoram a precisão de tiro.
Além da mudança visual, muito mais agressiva, a postura do policial americano médio, consciente ou inconscientemente, passou a ser mais dura, mais seca e menos flexível, pois o policial passou a ir a cada ocorrência sempre temendo o pior, ou uma situação letal.
Não se tem dados precisos se a letalidade policial aumentou por conta disso, nem que o número de policiais mortos em serviço teve uma queda considerável, mas o efeito psicológico e população foi imediata. Somando ao quadro geral, começaram ocorrer problemas em vários pontos do país devido as novas técnicas e armamentos usados pelos policiais nas suas atividades cotidianas normais. Um exemplo é o cumprimento de mandados de prisão, que antes era feito, quando a pessoa a ser presa não tinha um histórico de violência ou de portar armas, por dois policiais à paisana, que paravam o carro, tocavam a campainha, liam o mandado ao cidadão, o algemavam, colocavam ele no banco traseiro de uma viatura descaracterizada e, sem chamar muito a atenção da vizinhança, o levavam para autuação. Hoje, em várias cidades dos Estados Unidos, devido aos novos equipamentos e armas e, principalmente devido ao receio de que cada cidadão possa ser um terrorista em potencial, o mandado de prisão é cumprido por uma meia dúzia de policiais armados de fuzis, que chegam com um carro blindado gigantesco, e, usando táticas de combate urbano, usando capacetes, câmeras, luvas de tiro e escudos balísticos, arrombam a porta da casa (nos Estados Unidos até hoje praticamente nenhuma casa tem muro ou portão ficando a porta da sala virada diretamente para a rua), explodem bombas de gás lacrimogêneo ou de efeito moral ou as duas, quebram as janelas e prendem o cidadão, geralmente, depois de atingi-lo com um ou vários disparos de arma elétrica ou de borracha. É claro que ao sair levando o preso sob custódia, deixando a casa aos frangalhos e os familiares do homem preso tossindo por causa do gás e com os filhos dele chorando, a vizinhança comece a reclamar de excesso por parte da polícia. Soma-se a isso o agravante de que por várias vezes os policiais usaram essa superestrutura contra um estelionatário, um homem que cometeu perjúrio ou outro tipo de crime não violento, ou, quando tudo dá errado, a polícia entra em uma casa errada. Um último caso ocorreu com a família de um calmo e pacato cidadão cumpridor da lei, que teve o desprazer de ver a polícia derrubar a sua porta da sala, quebrar meia dúzia de janelas, matar o cachorro labrador da família que ficou no meio do caminho, levar vários tiros de arma elétrica e, por fim, ver pela janela do carro blindado a sua casa pegar fogo devido ao uso de uma granada de efeito moral que explodiu ao lado da cortina da sala.
Obviamente que esses casos isolados, explorados a exaustão pela mídia americana (sim a mídia deles é tão peçonhenta e a favor dos criminosos e contra a polícia quanto aqui no Brasil, a diferença é que lá existem uns poucos canais sérios que buscam a verdade, aqui no Brasil não existe nenhum), tem um fim político dentro do contexto de guerra cultural. Por isso existem na internet vários textos, livros e reportagens tanto a favor quanto contra a nova postura da polícia americana, que é chamada nesse contexto de “militarizada” e, como a grande mídia abomina qualquer tipo polícia, quando ocorre um erro, ou um suposto erro, por parte da polícia ele corre o mundo inteiro em 24 horas, como foi o caso recente em Ferguson, no estado americano do Missouri, e na cidade de Albuquerque, Novo México, no ano passado.
A discussão da militarização da polícia nos Estados Unidos da América do Norte não tem absolutamente nada a ver do que se imagina no Brasil, pois a polícia deles sempre teve a ética e a estética militar regendo as suas mais de 18 mil polícias, e isso nunca foi considerado um problema, muito pelo contrário, pois eles sempre se orgulharam dos seus educados e disciplinados policiais que andam bem uniformizados, com cabelos cortados ao estilo militar, possuem patentes e graduações e, principalmente, usam o nome bordado ou impresso em uma placa no peito, além do seu número no distintivo. Eles não conseguiriam entender, muito menos aceitar, uma força policial sem uniforme, sem o nome do policial em local visível, sem hierarquia definida, patrulhando as ruas das suas cidades. Isso, pra eles, é inconcebível.
Para que não reste dúvidas: A discussão nos Estados Unidos é sobre a nova postura das polícias que ocorreu após o traumático evento de 11 de setembro de 2001, enquanto que no Brasil a discussão é sobre a extinção/desmilitarização das polícias militares estaduais, que estão em funcionamento há mais de 200 anos, quebrando a hierarquia e a disciplina das corporações responsáveis por praticamente toda a segurança pública de mais de 200 milhões de brasileiros e que vem mantendo a lei e a ordem ao custo de mais de 500 policiais mortos por ano no Brasil. Essa proposta, que em qualquer país do mundo seria absurda e sem sentido, e que seria descartada de imediato pelo mau caratismo intrínseco, só tem sido debatida no Brasil por ser um projeto da esquerda e, por ela ter ocupado os espaços nos meios políticos, universitários, culturais e de mídia, ela impôs essa agenda como solução para os índices de guerra civil que o crime alcançou no país. Nada mais longe da verdade. Como desmilitarizar a polícia que combate organizações criminosas paramilitares como o PCC e o Comando Vermelho? Como desmilitarizar a polícia se quando nem ela dá conta de responder ao crime organizado o governo chama o Exército, a Marinha e Aeronáutica para ajudar? Por quê se quer extinguir a PM enquanto o mesmo governo quer criar a sua própria PM federal permanente, no caso a Força Nacional? Seria como se um médico, para curar uma grave doença, propusesse um tratamento que matasse os glóbulos brancos do paciente. Esse médico ou é um idiota completo ou quer na verdade que o paciente morra. No caso da desmilitarização/extinção das PM’s do Brasil é a mesma coisa.
O que se tem discutido, acaloradamente, é exatamente isso, o fim do policial americano de bairro e a sua substituição por um combatente que age e se comporta como se estivesse no Afeganistão ou em outra operação de guerra e não a quebra da hierarquia e da disciplina nas policias, como se tem pensado no Brasil. Para nós seria como, se de uma hora pra outra, todos os policiais militares nas ruas começassem a andar dentro de “caveirões”, usando capacetes balísticos, empunhando fuzis e tendo uma postura ao estilo do BOPE. Se esse modelo de polícia de guerra é o mais adequado a situação atual dos Estados Unidos cabe a eles, dentro de uma ampla discussão, chegar a uma conclusão dos custos e benefícios de tais medidas e se isso deve ser mantido doravante ou ser repensado quando a situação mundial melhorar, o que não deve acontecer tão cedo.
Esse assunto tão intrincado e cheio de nuances não se esgota com esse artigo, porém, espero ter podido descortinar essa realidade norte americana tão complexa e diferente da nossa, e, espero, que com mais esse estudo seja possível evitar achismos e amadorismos em uma matéria tão importante para todos os povos do mundo: A segurança pública.
Olavo Mendonça
Blitz Digital
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